sexta-feira, julho 23, 2004

A Criança que Sonhou o Pesadelo

Passam das duas da manhã onde dormes, passa das cinco onde tu e tudo se deita sobre mim...
Acho que deste luz a um monstro, que te consome. Que me consome. Tive uma casca um dia. A casca caíu, fiquei eu. Sinto falta de ar, falta de mim, falta de água, falta de terra. A Falta. Já não sei de quê, a falta do que era suposto, a falta do que devia, do dever, do poder. Sentes? A Falta? Cresço para lá de mim, em impulsos desmedidos, em choques concedidos. Tremo de calor, de vida.
Pela vida.
Transpiro e transpiras em mim, mulher. As batidas aumentam, as veias alargam por rios até ao teu mar. Caio por terra, caio no mosaico de joelhos, duro e frio...
Enterro as mãos dentro do eu que não acaba e estás tu lá dentro, Laura.
Uso-me, uso o meu mundo. Vendo-o por pequenos artifícios de jovens actores, jovens assassinos. Aqueles que nunca descobriram quem nós somos, aqueles que se abrem ao nada, sem saber quem são. Filhos de...
Meus filhos, teus filhos, filhos de alguém que não os quis, assim como nós. Mães, Filhos, Pais, do quê afinal?
Já ninguém nos quer Laura! Nem a terra, esvaziámos os olhos, sabes bem disso. Sabes bem porquê, tornámo-nos vazios.
Não vemos céu, não vemos estrelas, não vemos nuvens.
Mas as nossas mães continuam sentadas a olhar para lá, para longe, para o fundo da vida- morte.
Do lume que arde já apagado, como gostava de me possuir a mim mesma um dia... Por isso, descalça sinto o chão, sinto os corpos e mãos por baixo dele, que me prendem os pés e matam a alma.

Sorria menina, menina de rugas, pele velha, cabelos grisalhos pintados, roupa bonita luxuosa, que as costas doem e os ossos já não aguentam. Sorria menina, e chore por dentro, enquanto os outros choram por fora.

Grite homem, homem de olheiras, homem velho, homem doente, homem que dorme de dia, grite por fora enquanto o interior sufoca e sente toda a noite, enquanto o interior chora por quem é, enquanto o interior cai bêbedo no chão e não sabe já quem é.

Morre velha, morre com as tuas cicatrizes... aquelas que se tornam comichão, porque já foram dor, não é Laura? Ou ainda o são? Morre velha, porque és dor... e já ninguém ouve as velhas a quem a dor consumiu, a quem a dor é cancro e as enche de feridas, que sangram e que deliram. Internem as velhas que são todas iguais!

Amanhece a dor mais uma vez, pergunto-me o que sonhas. Será que sonhas muito?
Em criança- criança, fazia planos de sonho antes do sono. A criança enganava-se, já que não eram sonhos. Pesadelos. Pesadelos à beira-mar, pesadelos em que era criança- velha. Será que chegou a acordar, Laura?
A chama apagou –se, já não inalo o cheiro da noite, já não se prende à minha pele.

A criança foi acordar. And for the first time heaven seemed insane, cause heaven is to blame… for taking you away.

quarta-feira, julho 21, 2004

Carpe Diem

Virginia,

As horas não param. Aqui giram, à nossa volta, fitando-nos e chamando os nossos nomes. Não que me incomodem, sempre me fazem companhia. E quando as consigo possuir, fazê-las só minhas, isso é tudo o que poderia desejar, não?... Mas quando as sinto inquietas, irrequietas, sem as conseguir provar, atemorizam-me. São essas horas, as que não consigo ver, que me vão destruindo e roendo. A bolha... Presa em mim e naquele momento. Em pânico por não saber sair de lá. Vergonha, provavelmente, por estar desiquilibrada aqui. Posso pender muito para um lado e, tão depressa como parecia vir a cair, endireito-me milagrosamente e apoio-me no ar. Mas não volto novamente a sair de mim, do meu mundo pequenino e refugiado, tão depressa. Custa voltar a adaptar-me.

Mas, sabes, eu até amo a vida. (Assim como tu, pensas que não sei?) Daí as horas me poderem incomodar tanto. Por sentir que não estou a viver, que estou a perder algo de muito importante. Carpe Diem. Queria viver a um ritmo alucinante, imparável, viciante. E se me começo a atrasar, tropeço. Tu sabes, também conheces as horas.

Porque sorris enquanto sangras? Podes ouvir os meus gritos e até os meus gemidos mais silenciosos mas também eu te vejo, também te oiço, também sinto o sangue que escorre de ti, dos teus olhos, da tua carne. Não precisas de sorrir, não o forces. Se quiseres, não te pergunto nada, fico ao teu lado apenas, fitando o mesmo ponto que tu. Partilhamos o silêncio que nos fascina. Não deixes que um sorriso te magoe mais que uma lágrima.
E, aqui entre nós, não vais morrer por falta de palavras. Lembra-te que és Virginia, poetisa, e não és tu que procura as palavras, são elas que precisam de ti para viverem. Eu sei que as sentes borbulhar dentro de ti, seguidas, imparáveis, e que te imploram para as libertares. Acredita que são elas que precisam de ti, és tu que as crias, és tu que as fazes bailar em frente aos meus olhos quando leio o que escreves. E que me fazem também bailar. E, sim, poderei dançar contigo, se não fechares a porta do quarto escuro em que te escondeste. Lá estarei ao teu lado. Aí, sem querer, sorriremos verdadeiramente.