terça-feira, setembro 14, 2004

Noite

Cherished Virginia,

Há tanta palavra, e tão pouca que te pode responder. Perdi-me nas tuas cartas. Planeei a minha fuga espontânea para o berço confortável onde me aninhei.De vez em quando, umas palavras planam sobre a minha pequena cabecinha que as fixa, cantam-se. Mas não julgues que são palavras comuns. São palavras sem razão, sem juízo. Vozes doces que rasgam significados. Embalam-nos nos seus sons assimétricos, no rouco, no suave, na dor, no sorriso. E nada disto faz sentido.

Sabes porque dormimos à noite? Porque a noite é negra. É negra porque é nela que estamos sozinhos, tu, eu, eles. Ninguém adormece com outro. Somos só nós. Sós. É à noite que pensamos. E isso aterroriza-nos. É à noite, quando não vemos nada no negrume das horas, que perdemos a atenção do mundo e caímos em nós. Sentimos a nossa pequenez, impotência, insignificância. É por isso que adormecemos. Para não ficarmos uma noite inteira, negra, a pensar no absurdo. Ninguém gosta de ter insónias. Ninguém consegue ser feliz se tiver insónias. Tantas horas pensando, torturando-se nas sombras perdidas de um quarto.

Bem, talvez a noite nem seja tão escura. Talvez seja apenas eu, talvez seja apenas a mim que a noite aterroriza. À medida que a luz começa a enfraquecer, mais perdida me sinto. Detesto a minha noite. Talvez por isso, durma tanto. Talvez por isso, cada vez que me deito para acordar apenas no dia seguinte, desejo que o sono venha depressa, que não me recorde sequer de ter pensado. Normalmente, é o que acontece. Por vezes, atrasa-se.

Detesto a minha noite.

Virginia, aqui, onde ninguém nos lê, vou-te confessar que não acredito no amor. Encaro-o como se fosse uma religião. Mas, neste caso, no Mundo só existe dois tipos de religião: a que acredita no amor, e a que não acredita. Eu, neste momento, não acredito. Não acredito no amor entre dois amantes. Deixei de ser romântica. Não acredito no romance, na paixão, no amor eterno, não acredito mesmo no amor eterno. Seria um cliché dizer que são apenas hormonas mas... O que é que pode justificar o coração acelerado, os suores, o nervosismo, a alucinação? Repara só... tudo o que referi pode estar relacionado com diferentes doenças. “O amor é uma doença. Um cancro que te come as entranhas. Consome-te sen que te apercebas. Adquire o tamanho e a forma exacta que existia em ti antes. Tranforma-se em ti. E quando a doença desaparece, quando te deixa...apercebes-te que tens um vazio. Nada mais tens dentro de ti. Tudo foi...consumido.” Será isto que quero dizer?

Mas repara na religião que nos faz acreditar em algo, para nos sentirmos mais tranquilos, mais seguros na nossa vida. Exactamente, menos absurdos. O amor é igual. Um conceito que nos encoraja a sermos animais julgando não o ser. Julgamo-nos superiores quando amamos. Ou julgamos amar. Não somos mais que animais com a maldição do pensamento. (Será que a culpa é dos Gregos?...) A nossa única diferença perante os restantes animais é o facto de conseguirmos olhar para cima. Só isso. Olhamos para o céu, para as estrelas, e num momento de introspecção perguntamo-nos “o que estou aqui a fazer, e o que estão aquelas estrelas ali a fazer?” E começa o caos. Não paramos mais de nos questionar. E de nos afirmar o que ninguém sabe...