quarta-feira, setembro 08, 2004

A Morte dos Deuses II (no Meu Ventre)

Laura:

Sim Laura, os deuses abandonaram-nos, abandonaram o campo, vazaram os olhos e perdemos a fé. Fizeram crianças morrer com assassinos, enquanto as mães viam, sim, agora viam, agora que se sucumbiam a um quarto vazio e sujo, longe do mundo, longe das doenças e putrefacção, mas contaminadas por elas. Trabalham sol a sol, gestos já sincronizados pelas mãos calejadas e em sangue. Cabelos grisalhos e empeçados que lhes caem sobre as faces apagadas, pela terra que lhes apagou o céu e a vida.

Sumiram-se os Deuses, abandonaram-nas, quando cravaram as enxadas na Terra e as crianças gritavam “Pai. Os deuses morreram?”...”Pai. Não me ouves?”...”Pai, estou a sangrar. Pai. Dá-me a mão hoje, porque a Terra já não me segura e tenho medo do escuro”.
E a Terra é lavrada por gente que já nada vê, a que já nada resta.
Apenas a angústia, desespero, arrependimento... e o Tempo.

Às vezes lembro-me de quem me fez nascer, de quem me trouxe para fora de um buraco e me fez entrar noutro, de quem me fez chorar e gritar para a vida, o que a gente diz que é vida, os que pela primeira vez me fizeram ver sangue e lágrimas... imagino as caras deles, mas só me consigo lembrar de reacções, movimentos, vozes embriagadas nas noites por luzes de candeeiros de luz fraca, em salas pobres da classe baixa. Não há faces. Em toda agente consigo ver a cara de quem me criou, desde que a voz, o gesto, o olhar, a dor, seja semelhante aos que um dia me fizeram nascer, para me encurralar aqui... Devem ter fechado os olhos quando me fizeram. Já não se deviam amar. Por isso nasci assim, sem amor. Sem nada para dar nem receber. Sozinha. Deve-lhes ter custado perceber que já não havia amor para criar aquilo que fizeram... Sem nenhum amor. Sorriram quando chorei e pedi comida, sorriram. Mãe, pai... estou sozinha, nasci sozinha? Fizeram-me sozinhos, de costas um para o outro? Sabem que nunca vos conheci, nunca vou saber quem são, apesar de reconhecer as vossas vozes nas ruas e saber o que faziam... os corredores eram curtos e os quartos também... e havia amargura naquela casa e não havia cura para ninguém e por isso nasci assim, sem cura para nada. Voz. Oiço as vossas vozes hoje como ouvi as dos meus pais, oiço para tentar recordar, se algum timbre por reduzido que seja é deles, mas não é. São vocês a falarem-me, a quererem que vos oiça... e eu a querer ouvir os meus pais. Durmo, adormeço aos vossos pés, quem quer que seja... encosto-me e pode ser que hoje, hoje vocês vivam.
A criança que a mãe lhe morreu, veio hoje ter à minha mesa, dizer que não tinha dinheiro e estava perdida. Deitou-se na estrada. Eram drogas e era toda a bebida que vocês não conseguiram engolir... era toda a morte que vocês não conseguiram suportar. Deram-lhe a mão a tempo. Não vos deram a mão a vocês, pois não? Hoje, quem vi...foram vocês. Olhei-vos. Virei-vos a cara.

As minhas mãos gelaram há muito. Tudo o que toco congela, as mãos que toco tornam-se frias. O mundo foge e continua a mudar, eu continuo sob o meu chão de gelo fino que vai estalando. Tudo o que toco. Tudo o que mexo. Será que chega a transformar-se?

Sinto a tua voz caminhar atrás da minha, arrastada quase em uníssono... Meio rouca, um tanto gasta e cansada...

Ao mesmo tempo gritámos.