sábado, agosto 14, 2004

A Morte dos Deuses

Virginia,

Perdemo-nos todos. Ninguém mais voltará a encontrar-se. Chovemos, tão insignificantes como pó. E assim, atolhados numa rua bem estreita, ninguém nos descobrirá, porque ninguém nos procura.

Fomos abandonados. Sim, os deuses morreram há muito. Ficámos nós, deuses de nós mesmos que, de todo o poder que temos, só nos servimos da angústia, da destruição, não do mundo, mas de nós próprios. Deram-nos voz. Deram-nos pontos de interrogação que, imprudentemente, colocámos no fim das palavras. E agora?... Numa tontura, enleamo-nos nos nossos dons, amaldiçoamos por dentro, vangloriamos por fora. Vomitamos que sim quando sabemos que não.

Bem sabes que ninguém nos quer, arriscámos vomitar o não. Eles assustaram-se, disfarçaram-se de verdade e julgaram-nos. Ninguém nos quer ouvir. Ninguém nos quer falar. Mas, digo-te, ficaram de tal maneira atordoados que desconfiarão de todos os que rodopiam em sua volta. E de si próprios. Hoje, serão eles a tremerem de medo da noite silenciosa e solitária. Medo dos seus próprios fantasmas que sempre esconderam, com vergonha do seu poder, aquele que receavam usar contra si próprios; rasgá-los, esmagá-los e libertá-los.
Não querem ser livres, não querem ser loucos. Virginia, terás tu o dom da loucura? Todos gostávamos de ser loucos, poder fazer o que a nossa mente distorcida nos pede, por vezes, sem que ninguém nos censurasse. Ou, melhor, aterrorizando todos os que assistem à nossa loucura. Imagina-nos, loucas na nossa sanidade, pulando, dançando, beijando, sorrindo, vivendo como tanto queremos e, à nossa volta, o mundo, surpreso e desorientado, agarrando-se desesperadamente à sua demência racional, justificando-se, tentando justificar-nos. Mas não o farão, pois não? Que inveja que o mundo tem de nós, Virginia.

Não somos nós que estamos a mais, são todos os outros, são os não-loucos. São eles que estão acorrentados, cegos de cerrarem os olhos, surdos de taparem os ouvidos com as suas rugosas mãos, evitando assim tocar também. Mas forçam sorrisos tristes, para que os que lhes seguem acreditarem que é essa a felicidade, o silêncio, o esquecimento, o conformismo, a razão. E eles aparecem, e acreditam.

Já falámos tanto disto, Virginia. É para isto que vivemos, para descobrir qual de nós vive profunda e integralmente a vida que lhe foi oferecida. E voltamos sempre a este assunto. Não consigo sair dele. Tudo o que digo, remete para isto. Isto que não sei. Que não sabemos. Mas que podemos imaginar e acreditar que sim, talvez não nos custe tanto caminhar.

Somos duas loucas... Desenhámos o não na nossa carne. Rimo-nos de nós, para nós, só para nós. E descansamos por agora...