sexta-feira, junho 04, 2004

As Horas que nos Consomem



My dearest Laura Brown:

Laura, Laura…tens nome de gente Laura, gente grande, aquela que cresce, aprende, ensina e dá. Laura, tens o teu nome cravado aqui, mas já não me recordo da tua face, da tua expressão, do teu olhar... de um corpo vivo, aquele que eu queria por entre os olhares mortos que me sugavam tudo em quartos fechados. Desvaneceu e eu ainda sorri... Cabelos curtos, não é Laura? Olhos? Grandes, Azuis meio vivos, mortos. Eras o quê Laura?
Será que eras mesmo?
Quase te consegui ouvi gritar ontem, sabes? Estavas sozinha no quarto como sempre, agarraste-te à cama e gritaste. Não te resolve trancares a porta, eles ouvem à mesma, e eu também...
Laura, olhaste a morte de frente e riste-te dela, talvez porque tenhas fugido. Enquanto eles se riram de ti, vergonha e pena foi o que sentiste. Quero que saibas que também te vi nesse dia. Choravas, mas eu dei-te a mão, encostei-te a mão de mulher ao coração pesado, aquele que já não bate. E a tua última lágrima... não chegou a cair, pois não? Vês, eu estava lá.
Ele já não me agarra, não se agarra em gente doente, arrasta-me na areia do deserto que ele ergueu, deixa bocados de mim para trás.
Tenho sede Laura...
Não, não tenho fome, sabes bem que nunca tive, comi sempre pouco. Vomitei sempre muito a partir de certa idade, acho que tentava arrancar a alma à força. Vomitámos os dois juntos ontem à noite, já não somos nada.


Escrevo hoje com medo que as palavras se apaguem antes de as escrever, escrevo hoje com medo que elas se acabem... se elas se acabarem eu morro Laura. Noite, sim hoje é noite, mais uma entre muitas, noite no escuro, noite das estrelas. Simplesmente hoje. Este tempo que se formou hoje, aquele que usas no pulso, aquele dos ponteiros que nos mata e consome, que nos alimenta e pelo qual somos alimentados e o alimentamos. Apercebi-me que não consigo viver sem palavras. Hoje entrarem mais dentro de mim. Escavaram-me mais e eu sangrei. Não sei se alguma vez te disse, mas cada vez que entram dentro de nós, cada vez que nos conhecem e nos abrem, sangramos, derramamos muros, aquilo que nos sustenta, por isso morremos, os muros vão desabando até não sobrar nenhum, é isso que sinto hoje.
Às vezes quando sou eu e só eu, entro numa sala de luzes apagadas, entro por ela a dentro e danço, a cabeça explode e o corpo vibra...o corpo cansado mexe-se, Laura, podes dançar comigo? Tenho saudades... saudades daquilo que nunca fui, quantas vezes te disse isto? Saudades. E mesmo assim não choro, não consigo chorar... mas tenho forças para dançar. Laura? Corre... sente a chuva e o vento, desamarra-te, eu estou aqui, sempre, sempre sem o tempo.

Sempre com as horas...