quarta-feira, outubro 07, 2009

Ask her for directions

My dearest Laura,

Todos voltam para casa, é incrível como todos podem dizer "I want to go home". E voltam. Tão facilmente. Porque é que é apenas lá que se reencontram consigo mesmos? Parece-me um pouco estranha esta unicidade. Fundamentalista, talvez. E egoísmo também... e quem não quer voltar para casa com eles? E quem não pode voltar? Será que pensam que há alguém há espera deles? Há a memória. O que é reencontrarmo-nos? É irmos para a terra prometida? É curioso, como é possível que apenas um pequeno canto no mundo lhes dê essa sensação... e se a casa cair, e se um incêndio a tornar pó. Seremos pó também. Mas que reduzidos que nós estamos! E será que aí crescemos, porque a nossa casa não é realmente a nossa casa, foi algo que criámos nos nossos desenhos. Todas as criancinhas são pequenos fascistas, queremos a nossa família, a nossa casinha, e nós no centro, bem pintados com um grande sorriso. E para sempre crianças continuamos. É o ponto onde podemos voltar para dentro, mas porquê voltar para dentro ou ficar dentro daquele retrato bonito se de fora está tanto para ver. Infelizmente eu não posso dizer que quero voltar para casa, estou demasiado longe e quando se está demasiado longe a nossa casa torna-se apenas aquele retrato bonito. Mais bonito do que o é na realidade. Por isso, é bom estar tão longe, a nossa casa sabe melhor, quanto mais longe mais bonita. Talvez perca até o significado original e ganhe outro que nós criámos, aquele que sempre quisemos quando brincávamos sozinhos em casa e lhe descobríamos o fundo.

O que perdemos, o que perdemos... Nada, Laura. Uma casa, uma família, uma sessão à mesa onde todos se riem e contam histórias de quando eram novos? Se alguém te bate não perdeste nada, eu sei que não perdi. Eu não preciso da casa. Portanto não perdi nada. Ganhei uma marca na cara e ganhei-a a ver o mundo, já sentiste aquela sensação... quando te batem (e pode ser com palavras Laura) e tudo se torna mais claro. Mesmo entre lágrimas, parece que uma luz te ilumina. Uma grande luz clara, mas é com racionalidade.

Eu sei que é difícil sermos nus, para mim também foi difícil. Ainda é, não mintamos. Mas aos poucos. Um olhar, uma palavra mais dura de quem nos ama... e o que importa estarmos nus. Aqui me vês, sem cabelo, sem roupa, sem dentes, cheia de defeitos e remendos por todo o corpo, cheia de sujidade que a moralidade condena. E apenas vê quem quer ver. Out of here.

Tentei ver o mundo. Tentei vê-lo tanto quanto pude, quero vê-lo tanto quanto possa e engoli-lo sem me engasgar. Por vezes, tento nem saboreá-lo, com a pressa que tenho. Não é pressa, sabes? É medo. Medo de fome, medo de falta. Medo de nunca saber ao que sabe, medo do fim. Da morte que se aproxima, prefiro morrer engasgada. Vi tanto, que por vezes não te vi. Quero ir por esta estrada fora e despenhar-me porque é aquela luz de novo. Talvez seja a pressa de chegar a algum lado (vais-me dizer que quero chegar a casa?). Chegar a lado nenhum.

Laura, peço-te então, encontra-me uma casa. Que seja minha, que eu possa escolher ser eu. Podes ser tu a minha casa, irmã. Preciso de respirar dentro de alguém que saiba quem sou, quem fui, que seja capaz de me alojar. E explodir lá dentro. Porque mais palavras não chegam. Não quero mais territórios ocupados e não quero ocupar territórios que não são meus. Alugo-te um quarto se ele estiver vago, se não houver ninguém melhor que eu para o ocupar. Alugo-to por uns dias então e dou-te também a chave para entrares quando quiseres, prometo. Não estou longe agora, chego o mais depressa que posso até ti. A estrada não finda...

terça-feira, abril 14, 2009

Dia

Virginia,

Não nos podemos perder das palavras. São a nossa carne, o nosso fluido, o nosso amor. Porque nada do que importa se escreve em palavras certas, mas há a ingenuidade e o sonho de quem o tenta que não se pode perder. Temos os nossos dias, Virginia, temos o pé à frente do outro, os olhos nos cartazes da rua, o cheiro do chá de frutas, o toque da pele, o lábio no copo, o ouvido atento ao chiar da cidade. Há tudo isto, sim, e há a vida onde se encontram para se fundirem num ninho de almas, mas há mais.

Sabes, minha irmã, os dias prosseguem. Hoje deito-me, sem forças nas pernas, perdi sangue, perdi tempo, perdi paciência e perdi chamadas. Arrumo depressa todas as horas gastas na primeira gaveta da mesa de cabeceira, mesmo que não ignore o facto de nunca mais as poder desarrumar, e morro para este dia. Desligo deste espaço, mergulho naquele surrealismo nocturno de que tantas vezes não nos recordamos, e espero pelo despertar ensonado de amanhã. E já não existe este dia. Perdeu-se naquela gaveta funda e cruel. Virginia, não me deixes viver apenas aqui.

Faltam-me as palavras. Enquanto te escrevo, o corpo arde-me. Arde-me o peito, amoroso e enternecido por me ter recordado dele. Ardem-me os membros pelo uso que lhes dou. Tenho o corpo feliz por o ter desperto para ti, de novo. Não me deixa parar.

Onde foi que nos esquecemos das nossas palavras, my dear? Volta para o nosso universo, comigo. Somos feitas de palavras quentes e firmes, de longas conversas de fim de noite. Somos feitas de tanto. Escreve-nos, Virginia. Escreve-me de volta.

terça-feira, setembro 14, 2004

Noite

Cherished Virginia,

Há tanta palavra, e tão pouca que te pode responder. Perdi-me nas tuas cartas. Planeei a minha fuga espontânea para o berço confortável onde me aninhei.De vez em quando, umas palavras planam sobre a minha pequena cabecinha que as fixa, cantam-se. Mas não julgues que são palavras comuns. São palavras sem razão, sem juízo. Vozes doces que rasgam significados. Embalam-nos nos seus sons assimétricos, no rouco, no suave, na dor, no sorriso. E nada disto faz sentido.

Sabes porque dormimos à noite? Porque a noite é negra. É negra porque é nela que estamos sozinhos, tu, eu, eles. Ninguém adormece com outro. Somos só nós. Sós. É à noite que pensamos. E isso aterroriza-nos. É à noite, quando não vemos nada no negrume das horas, que perdemos a atenção do mundo e caímos em nós. Sentimos a nossa pequenez, impotência, insignificância. É por isso que adormecemos. Para não ficarmos uma noite inteira, negra, a pensar no absurdo. Ninguém gosta de ter insónias. Ninguém consegue ser feliz se tiver insónias. Tantas horas pensando, torturando-se nas sombras perdidas de um quarto.

Bem, talvez a noite nem seja tão escura. Talvez seja apenas eu, talvez seja apenas a mim que a noite aterroriza. À medida que a luz começa a enfraquecer, mais perdida me sinto. Detesto a minha noite. Talvez por isso, durma tanto. Talvez por isso, cada vez que me deito para acordar apenas no dia seguinte, desejo que o sono venha depressa, que não me recorde sequer de ter pensado. Normalmente, é o que acontece. Por vezes, atrasa-se.

Detesto a minha noite.

Virginia, aqui, onde ninguém nos lê, vou-te confessar que não acredito no amor. Encaro-o como se fosse uma religião. Mas, neste caso, no Mundo só existe dois tipos de religião: a que acredita no amor, e a que não acredita. Eu, neste momento, não acredito. Não acredito no amor entre dois amantes. Deixei de ser romântica. Não acredito no romance, na paixão, no amor eterno, não acredito mesmo no amor eterno. Seria um cliché dizer que são apenas hormonas mas... O que é que pode justificar o coração acelerado, os suores, o nervosismo, a alucinação? Repara só... tudo o que referi pode estar relacionado com diferentes doenças. “O amor é uma doença. Um cancro que te come as entranhas. Consome-te sen que te apercebas. Adquire o tamanho e a forma exacta que existia em ti antes. Tranforma-se em ti. E quando a doença desaparece, quando te deixa...apercebes-te que tens um vazio. Nada mais tens dentro de ti. Tudo foi...consumido.” Será isto que quero dizer?

Mas repara na religião que nos faz acreditar em algo, para nos sentirmos mais tranquilos, mais seguros na nossa vida. Exactamente, menos absurdos. O amor é igual. Um conceito que nos encoraja a sermos animais julgando não o ser. Julgamo-nos superiores quando amamos. Ou julgamos amar. Não somos mais que animais com a maldição do pensamento. (Será que a culpa é dos Gregos?...) A nossa única diferença perante os restantes animais é o facto de conseguirmos olhar para cima. Só isso. Olhamos para o céu, para as estrelas, e num momento de introspecção perguntamo-nos “o que estou aqui a fazer, e o que estão aquelas estrelas ali a fazer?” E começa o caos. Não paramos mais de nos questionar. E de nos afirmar o que ninguém sabe...

quarta-feira, setembro 08, 2004

A Morte dos Deuses II (no Meu Ventre)

Laura:

Sim Laura, os deuses abandonaram-nos, abandonaram o campo, vazaram os olhos e perdemos a fé. Fizeram crianças morrer com assassinos, enquanto as mães viam, sim, agora viam, agora que se sucumbiam a um quarto vazio e sujo, longe do mundo, longe das doenças e putrefacção, mas contaminadas por elas. Trabalham sol a sol, gestos já sincronizados pelas mãos calejadas e em sangue. Cabelos grisalhos e empeçados que lhes caem sobre as faces apagadas, pela terra que lhes apagou o céu e a vida.

Sumiram-se os Deuses, abandonaram-nas, quando cravaram as enxadas na Terra e as crianças gritavam “Pai. Os deuses morreram?”...”Pai. Não me ouves?”...”Pai, estou a sangrar. Pai. Dá-me a mão hoje, porque a Terra já não me segura e tenho medo do escuro”.
E a Terra é lavrada por gente que já nada vê, a que já nada resta.
Apenas a angústia, desespero, arrependimento... e o Tempo.

Às vezes lembro-me de quem me fez nascer, de quem me trouxe para fora de um buraco e me fez entrar noutro, de quem me fez chorar e gritar para a vida, o que a gente diz que é vida, os que pela primeira vez me fizeram ver sangue e lágrimas... imagino as caras deles, mas só me consigo lembrar de reacções, movimentos, vozes embriagadas nas noites por luzes de candeeiros de luz fraca, em salas pobres da classe baixa. Não há faces. Em toda agente consigo ver a cara de quem me criou, desde que a voz, o gesto, o olhar, a dor, seja semelhante aos que um dia me fizeram nascer, para me encurralar aqui... Devem ter fechado os olhos quando me fizeram. Já não se deviam amar. Por isso nasci assim, sem amor. Sem nada para dar nem receber. Sozinha. Deve-lhes ter custado perceber que já não havia amor para criar aquilo que fizeram... Sem nenhum amor. Sorriram quando chorei e pedi comida, sorriram. Mãe, pai... estou sozinha, nasci sozinha? Fizeram-me sozinhos, de costas um para o outro? Sabem que nunca vos conheci, nunca vou saber quem são, apesar de reconhecer as vossas vozes nas ruas e saber o que faziam... os corredores eram curtos e os quartos também... e havia amargura naquela casa e não havia cura para ninguém e por isso nasci assim, sem cura para nada. Voz. Oiço as vossas vozes hoje como ouvi as dos meus pais, oiço para tentar recordar, se algum timbre por reduzido que seja é deles, mas não é. São vocês a falarem-me, a quererem que vos oiça... e eu a querer ouvir os meus pais. Durmo, adormeço aos vossos pés, quem quer que seja... encosto-me e pode ser que hoje, hoje vocês vivam.
A criança que a mãe lhe morreu, veio hoje ter à minha mesa, dizer que não tinha dinheiro e estava perdida. Deitou-se na estrada. Eram drogas e era toda a bebida que vocês não conseguiram engolir... era toda a morte que vocês não conseguiram suportar. Deram-lhe a mão a tempo. Não vos deram a mão a vocês, pois não? Hoje, quem vi...foram vocês. Olhei-vos. Virei-vos a cara.

As minhas mãos gelaram há muito. Tudo o que toco congela, as mãos que toco tornam-se frias. O mundo foge e continua a mudar, eu continuo sob o meu chão de gelo fino que vai estalando. Tudo o que toco. Tudo o que mexo. Será que chega a transformar-se?

Sinto a tua voz caminhar atrás da minha, arrastada quase em uníssono... Meio rouca, um tanto gasta e cansada...

Ao mesmo tempo gritámos.

sábado, agosto 14, 2004

A Morte dos Deuses

Virginia,

Perdemo-nos todos. Ninguém mais voltará a encontrar-se. Chovemos, tão insignificantes como pó. E assim, atolhados numa rua bem estreita, ninguém nos descobrirá, porque ninguém nos procura.

Fomos abandonados. Sim, os deuses morreram há muito. Ficámos nós, deuses de nós mesmos que, de todo o poder que temos, só nos servimos da angústia, da destruição, não do mundo, mas de nós próprios. Deram-nos voz. Deram-nos pontos de interrogação que, imprudentemente, colocámos no fim das palavras. E agora?... Numa tontura, enleamo-nos nos nossos dons, amaldiçoamos por dentro, vangloriamos por fora. Vomitamos que sim quando sabemos que não.

Bem sabes que ninguém nos quer, arriscámos vomitar o não. Eles assustaram-se, disfarçaram-se de verdade e julgaram-nos. Ninguém nos quer ouvir. Ninguém nos quer falar. Mas, digo-te, ficaram de tal maneira atordoados que desconfiarão de todos os que rodopiam em sua volta. E de si próprios. Hoje, serão eles a tremerem de medo da noite silenciosa e solitária. Medo dos seus próprios fantasmas que sempre esconderam, com vergonha do seu poder, aquele que receavam usar contra si próprios; rasgá-los, esmagá-los e libertá-los.
Não querem ser livres, não querem ser loucos. Virginia, terás tu o dom da loucura? Todos gostávamos de ser loucos, poder fazer o que a nossa mente distorcida nos pede, por vezes, sem que ninguém nos censurasse. Ou, melhor, aterrorizando todos os que assistem à nossa loucura. Imagina-nos, loucas na nossa sanidade, pulando, dançando, beijando, sorrindo, vivendo como tanto queremos e, à nossa volta, o mundo, surpreso e desorientado, agarrando-se desesperadamente à sua demência racional, justificando-se, tentando justificar-nos. Mas não o farão, pois não? Que inveja que o mundo tem de nós, Virginia.

Não somos nós que estamos a mais, são todos os outros, são os não-loucos. São eles que estão acorrentados, cegos de cerrarem os olhos, surdos de taparem os ouvidos com as suas rugosas mãos, evitando assim tocar também. Mas forçam sorrisos tristes, para que os que lhes seguem acreditarem que é essa a felicidade, o silêncio, o esquecimento, o conformismo, a razão. E eles aparecem, e acreditam.

Já falámos tanto disto, Virginia. É para isto que vivemos, para descobrir qual de nós vive profunda e integralmente a vida que lhe foi oferecida. E voltamos sempre a este assunto. Não consigo sair dele. Tudo o que digo, remete para isto. Isto que não sei. Que não sabemos. Mas que podemos imaginar e acreditar que sim, talvez não nos custe tanto caminhar.

Somos duas loucas... Desenhámos o não na nossa carne. Rimo-nos de nós, para nós, só para nós. E descansamos por agora...

sexta-feira, julho 23, 2004

A Criança que Sonhou o Pesadelo

Passam das duas da manhã onde dormes, passa das cinco onde tu e tudo se deita sobre mim...
Acho que deste luz a um monstro, que te consome. Que me consome. Tive uma casca um dia. A casca caíu, fiquei eu. Sinto falta de ar, falta de mim, falta de água, falta de terra. A Falta. Já não sei de quê, a falta do que era suposto, a falta do que devia, do dever, do poder. Sentes? A Falta? Cresço para lá de mim, em impulsos desmedidos, em choques concedidos. Tremo de calor, de vida.
Pela vida.
Transpiro e transpiras em mim, mulher. As batidas aumentam, as veias alargam por rios até ao teu mar. Caio por terra, caio no mosaico de joelhos, duro e frio...
Enterro as mãos dentro do eu que não acaba e estás tu lá dentro, Laura.
Uso-me, uso o meu mundo. Vendo-o por pequenos artifícios de jovens actores, jovens assassinos. Aqueles que nunca descobriram quem nós somos, aqueles que se abrem ao nada, sem saber quem são. Filhos de...
Meus filhos, teus filhos, filhos de alguém que não os quis, assim como nós. Mães, Filhos, Pais, do quê afinal?
Já ninguém nos quer Laura! Nem a terra, esvaziámos os olhos, sabes bem disso. Sabes bem porquê, tornámo-nos vazios.
Não vemos céu, não vemos estrelas, não vemos nuvens.
Mas as nossas mães continuam sentadas a olhar para lá, para longe, para o fundo da vida- morte.
Do lume que arde já apagado, como gostava de me possuir a mim mesma um dia... Por isso, descalça sinto o chão, sinto os corpos e mãos por baixo dele, que me prendem os pés e matam a alma.

Sorria menina, menina de rugas, pele velha, cabelos grisalhos pintados, roupa bonita luxuosa, que as costas doem e os ossos já não aguentam. Sorria menina, e chore por dentro, enquanto os outros choram por fora.

Grite homem, homem de olheiras, homem velho, homem doente, homem que dorme de dia, grite por fora enquanto o interior sufoca e sente toda a noite, enquanto o interior chora por quem é, enquanto o interior cai bêbedo no chão e não sabe já quem é.

Morre velha, morre com as tuas cicatrizes... aquelas que se tornam comichão, porque já foram dor, não é Laura? Ou ainda o são? Morre velha, porque és dor... e já ninguém ouve as velhas a quem a dor consumiu, a quem a dor é cancro e as enche de feridas, que sangram e que deliram. Internem as velhas que são todas iguais!

Amanhece a dor mais uma vez, pergunto-me o que sonhas. Será que sonhas muito?
Em criança- criança, fazia planos de sonho antes do sono. A criança enganava-se, já que não eram sonhos. Pesadelos. Pesadelos à beira-mar, pesadelos em que era criança- velha. Será que chegou a acordar, Laura?
A chama apagou –se, já não inalo o cheiro da noite, já não se prende à minha pele.

A criança foi acordar. And for the first time heaven seemed insane, cause heaven is to blame… for taking you away.

quarta-feira, julho 21, 2004

Carpe Diem

Virginia,

As horas não param. Aqui giram, à nossa volta, fitando-nos e chamando os nossos nomes. Não que me incomodem, sempre me fazem companhia. E quando as consigo possuir, fazê-las só minhas, isso é tudo o que poderia desejar, não?... Mas quando as sinto inquietas, irrequietas, sem as conseguir provar, atemorizam-me. São essas horas, as que não consigo ver, que me vão destruindo e roendo. A bolha... Presa em mim e naquele momento. Em pânico por não saber sair de lá. Vergonha, provavelmente, por estar desiquilibrada aqui. Posso pender muito para um lado e, tão depressa como parecia vir a cair, endireito-me milagrosamente e apoio-me no ar. Mas não volto novamente a sair de mim, do meu mundo pequenino e refugiado, tão depressa. Custa voltar a adaptar-me.

Mas, sabes, eu até amo a vida. (Assim como tu, pensas que não sei?) Daí as horas me poderem incomodar tanto. Por sentir que não estou a viver, que estou a perder algo de muito importante. Carpe Diem. Queria viver a um ritmo alucinante, imparável, viciante. E se me começo a atrasar, tropeço. Tu sabes, também conheces as horas.

Porque sorris enquanto sangras? Podes ouvir os meus gritos e até os meus gemidos mais silenciosos mas também eu te vejo, também te oiço, também sinto o sangue que escorre de ti, dos teus olhos, da tua carne. Não precisas de sorrir, não o forces. Se quiseres, não te pergunto nada, fico ao teu lado apenas, fitando o mesmo ponto que tu. Partilhamos o silêncio que nos fascina. Não deixes que um sorriso te magoe mais que uma lágrima.
E, aqui entre nós, não vais morrer por falta de palavras. Lembra-te que és Virginia, poetisa, e não és tu que procura as palavras, são elas que precisam de ti para viverem. Eu sei que as sentes borbulhar dentro de ti, seguidas, imparáveis, e que te imploram para as libertares. Acredita que são elas que precisam de ti, és tu que as crias, és tu que as fazes bailar em frente aos meus olhos quando leio o que escreves. E que me fazem também bailar. E, sim, poderei dançar contigo, se não fechares a porta do quarto escuro em que te escondeste. Lá estarei ao teu lado. Aí, sem querer, sorriremos verdadeiramente.